Entrevista feita por Américo Rodrigues a Manuel Poppe, que foi publicada na revista Praça Velha, em 2008:
A Guarda é a minha Pátria!
Manuel Poppe fez-se homem na Guarda. No “Rocha”, mas também no “Poço do Gado”. Na Biblioteca do Padre Pôpo, mas também na papelaria do Senhor Casimiro. Tem da Guarda a memória dos afectos.
Muitas vezes provocatório e quase sempre irreverente q.b. Manuel Poppe é um intelectual distinto. Não alinha no politicamente correcto, nem no silêncio das conveniências. É cidadão de corpo inteiro, amigo do desassombro. Diz o que pensa, o que é raro neste país de capelinhas e de figurões bem-falantes. Anarquista tranquilo, Manuel Poppe é, para além de um excelente prosador, um homem íntegro, um homem livre.
Fez crítica literária no “Diário Popular”e produziu e apresentou um programa sobre livros na televisão. Foi conselheiro cultural junto da Embaixadas de Portugal em Roma, São Tomé, Telavive e Rabat. É “Dottore in Lingue e Leterrature Straniere, pela Universidade “La Sapienza”, com uma tese sobre Régio. Sandro Pertini distinguiu-o com a comenda da Ordem de Mérito e as cidades de Florença e Veneza com as respectivas Medalhas de Ouro.
Poppe é ensaísta, dramaturgo, romancista e cronista. Em 1995 recebeu o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores.
Publicou “Temas da Literatura Viva” (1982), Crónicas Italianas (1984), Os amantes voluntários (1987), O pássaro de vidro (1988), A mulher nua (1997), Sombras em Telavive (2001), Memórias, José Régio e outros escritores (2001), A tragédia de Manuel Laranjeira (2002), Um Inverno em Marraquexe (2004), A aranha (2005) e Pedro I (2007), entre outras obras. Está traduzido e publicado em hebraico e italiano.
À revista da “sua” terra respondeu com a costumeira frontalidade, doesse a quem doesse. Manuel Poppe é um escritor comprometido, não acredita nas tretas da “arte pela arte”. Tem muito a dizer. Parafraseando um célebre texto de teatral: ouçamos como ele respira.
Nasceu em Lisboa e viveu em várias partes do mundo. No entanto, mantém uma relação forte com a Guarda. Porquê? Como é que começou e foi desenvolvida essa relação?
Vim viver para a Guarda, em 1950. Era doente do Dr. Ladislau Patrício. Curou-me, em oito meses, uma tuberculose pulmonar e aconselhou-me a ficar na Guarda. Aí, fiz a quarta classe e a admissão ao Liceu (desde criança, a bronquite asmática impediu que eu tivesse um percurso escolar normal, isto é, atrasou-me...). Depois, estudei os primeiros três anos do Liceu, no velho "Rocha". Voltei a Lisboa mas nunca ali permaneci continuadamente. Aliás, meus pais, logo a seguir a eu sair da Guarda, alugaram uma casa em Celorico da Beira, onde passei férias e, às vezes, longas temporadas. Preparei exames do 7º ano da altura (o 12º do secundário de hoje), na Guarda (o de Latim, por exemplo, com o saudoso Padre José Amarelo). Abri, para a vida, na Guarda. E sabe que essas primeiras experiências afectivas marcam-nos, indelevelmente. Sim, amigos como o José Pires Sanches, o António Almeida -o "Cida-, os Lorga, o João Alfredo Sá Pessoa, o Bidarra, não se esquecem nunca. Aliás, na Guarda tive a minha primeira grande paixão: por uma bela adolescente de Vila Fernando... Depois, a Libânia e as suas fantásticas "bailarinas" ensinaram-me muito mais do que o Ovídio ensina, em Arte de Amar... Corri mundo, é verdade; mas levava, dentro, uma luzinha única, que era a de "um alto monte da sagrada Beira", Augusto Gil dixit, e sempre me alumiou e me alumia. A Guarda é a minha Pátria, dentro da nossa Pátria portuguesa. Um dia, o mais tarde possível!, aí gostaria deixassem os meus ossos descansar.
E como era a Guarda no tempo em que aqui cresceu?
Vou dizer-lhe uma coisa: nas minhas andanças pelo mundo, nunca encontrei um povo com a qualidade humana do povo português. Qualidade superior. Acolhedor, generoso, de espinha direita (apesar de os sucessivos donos do poder, da terra e do dinheiro, desde há oitocentos anos, e especialmente nos últimos cem e agora mesmo, tudo terem feito para o humilhar e explorar). Gente corajosa e leal. Pois bem, a Guarda da minha infância era assim. Naturalmente, pesava a sombra castradora do salazarismo, que o clero e a média burguesia respeitavam. Cidade sufocante? Não creio. Clero e burguesia praticavam -e estimavam- hipocrisias e essa atitude, tão característica, abria brechas, por onde escapávamos nós os jovens, à busca da vida verdadeira. Mas posso citar outros, merecedores da nossa gratidão. Olhe: o Padre Pôpo, director da Biblioteca Municipal e Júlio Xavier, dono do Cinema. Ambos caminharam ao invés da corrente ultra-conservadora, o primeiro, discretamente, o segundo, abertamente -e ajudaram ao combate contra a ignorância. Junte-lhes o admirável Sr. Casimiro e a sua Papelaria, onde podíamos comprar os livros dos melhores autores, às vezes, a prestações. Depois, homens como o médico Pereira da Silva, o professor Bernardo, os advogados João Gomes e Bigotte, destacavam-se, muito positivamente, no cinzento ambíguo dos tais "situacionistas", que eram, sobretudo, conformistas de alma medíocre. E -não esqueça!- havia, na cidade, as tais "bailarinas" de quem lhe falei, que marcavam um ritmo poético e consolador...
A Papelaria do Sr. Casimiro, a Biblioteca do Padre Pôpo e, por outro lado, a casa da Libaninha eram oásis na Guarda da sua juventude?
Eram lugares diferentes. Cada qual, à sua maneira. E, depois, viviam-se conforme cada um de nós. Quantos iam à Papelaria do Sr. Casimiro comprar livros? E quantos frequentavam a Biblioteca do Padre Pôpo? Não muitos, provavelmente. A nossa vida corria de outra maneira: a saída do Liceu, para ver as colegas, a Cova Funda, A Floresta, o Belo Horizonte, o Café Mondego, e, naturalmente, a casa da Libaninha juntavam muito mais gente. Depois, uma vida académica que arremedava a de Coimbra: trupes, caça aos caloiros, prestígio dos "veteranos" (lembro o nosso -o da nossa Guarda- Pad'Zé, que era uma excelente e pacífica pessoa e que, disse-me o Pires Sanches, veio a morrer professor no Sabugal, íntimo do Baco). Oásis? Sim, com certeza. O fosso que separava os estudantes e os futricas, ou, se quiser, os estudantes e a média burguesia, era profundo e as vidas viviam-se separadas. Por exemplo: se cruzávamos um professor, mudávamos de passeio; era impensável um estudante frequentar o Café Monteneve, onde se reuniam as pessoas gradas da sociedade egitaniense.
Havia, também, um sentido forte de solidariedade, que levou a coisas divertidas como o enterro do cinema (não me lembro porquê), a confrontos com a polícia, a desafios às autoridades académicas, desafios ao Reitor do Liceu, por exemplo (que recordo sem nenhuma simpatia) e que atingiu o ponto extremo quando um colega tentou suicidar-se por causa de um percalço escolar.
Já o director do Colégio, o Cónego Quintalo, um homem muito inteligente e original, nos merecia respeito. Para mim, o Padre Pôpo e o Sr. Casimiro foram pessoas muitíssimo importantes, mas eu, que dei em borrador de páginas, pus sempre a vida à frente dos livros e, assim, era mais fácil encontrarem-me nos lugares míticos: a tal Cova Funda, o Mondego, a salinha da Libânia. E, à saída do Liceu...
Depois de sair da Guarda, por onde andou e o que fez?
Fiz as minhas universidades, como diria Gorki. Vivi alguns anos (seis), em Lisboa. Em 1969, mudei-me para São João do Estoril. Fui colaborador efectivo do extinto Diário Popular, onde dirigi, a meias com o grande jornalista Jacinto Baptista, o suplemento cultural “5ª feira à tarde”. Fundei, com outros, a revista O Tempo e o Modo. De 1972 a 1974, produzi o programa O Livro à procura do leitor, para a RTP. Em 9 de Janeiro de 1975, tomei posse do meu lugar de Conselheiro Cultural junto da Embaixada portuguesa, em Roma. E, aí, começou a minha peregrinação pelo mundo: 4 países e 3 continentes. A estadia em Roma (15 anos) marcou-me. Imagine o que é deixar um país ainda ferido de quase 50 anos de obscurantismo e chegar a Itália! Em 1975 -ano do assassinato de Pier Paolo Pasolini-, a Itália atravessava um período de grande e enriquecedor debate político, que acompanhei. As minhas funções levaram-me a percorrer o país e a contactar diversas autarquias. O vereador para a Cultura tem, em Itália, muitíssima importância, uma vez que a acção cultural é o brasão da cidade e dignifica, especialmente, aqueles que a administram. Quase todas as principais autarquias pertenciam ao Partido Comunista Italiano e ao Partido Socialista. Isso também marcava diferenças culturais, em relação a Portugal. Entre o PCP e o PCI, por exemplo, havia um fosso impressionante. Dirá que as condições em que se moviam não eram as mesmas, e tem razão. Mas, no PCI, fermentava um sentido democrático muito especial. Era, pois, através do diálogo com figuras da política, e graças a esse, que se ia desenvolvendo a divulgação cultural. Conheci personagens extraordinárias, quer no campo da cultura, quer no campo da política. Políticos como o socialista De Martino e os comunistas Berlinguer e Giancarlo Pajetta, o democrata-cristão Enzo Scotti. Escritores como Giorgio Bassani, Moravia e Claudio Magris, com os quais privei. Realizadores de cinema, actores (gostaria de sublinhar a minha amizade com uma mulher extraordinária, grande actriz de Bergman, Ingrid Thulin), homens de teatro. De Itália, segui para São Tomé e Príncipe e amei, profundamente, a África, onde descobri e consciencializei o terceiro mundo. Foram 5 anos inesquecíveis. Daí, fui para Telavive. Outros 5 anos muito importantes, que me ensinaram muito acerca do médio-oriente, tão mal contado! Depois, e a fechar, 2 anos em Marrocos, também enriquecedores, apesar de demasiado curtos... Olhe, uma vez, num jantar em nossa casa, em Rabat, alguém me perguntou qual o país de que viria a ter mais saudades. Respondi-lhe: "Não sei. Terei saudades de todos". Era sincero: é verdade. Se a viagem depende do viajante, do modo como a assume e se entrega, o viajante também é o resultado da viagem. Penso que seria outro e os meus livros e a minha atitude cívica seriam outros, se não tivesse feito o percurso que fiz. E, já agora: exerci, durante quase 30 anos, funções diplomáticas, obviamente ligado ao MNE. Pois bem: nunca me chamaram a atenção para nenhum livro ou artigo publicados. Sempre respeitaram a minha liberdade de expressão. Devo assinalar este facto.
O seu percurso literário é longo e de grande coerência. Tem tido a atenção e o reconhecimento merecidos?
Reconhecimento? Sim, acho que tive. Mas vamos por partes: na Feira das Vaidades Literatas reina a conhecida conspiração do silêncio: não me referem. Sofro com isso? Não; ou melhor: aborrece-me que procurem esconder-me aos leitores. Mas, faço minhas as palavras de Henrique Lima Freire: "Eles não me ligam e eu também não lhes ligo".
No plano do leitor comum -o mais importante- tenho recebido muitas respostas reconfortantes.
Certas minhas peças tiveram o público desejado; certos meus livros estão esgotados. Depois, mereci a confiança de pessoas como o meu amigo Américo Rodrigues, homem de teatro (e de outros homens de teatro: Júlio Cardoso, Roberto Merino, Júnior Sampaio, Valdemar Santos) e do meu editor -amigo também- Veiga Ferreira. Mereço a confiança dos meus colegas, no Jornal de Notícias, vai para 30 anos. Em Israel, a apresentação da tradução do meu livro A Mulher Nua e Outros Contos, juntou muita gente e alguns dos escritores que contam: Nathan Zach, Amir Aharon... E mais coisas. Mas não quero falar nisso, nem orgulhar-me, nem queixar-me. Olhe, uma grande escritora sul-africana, Nadine Gordimer, dizia: "Escrevo como se já tivesse morrido". Isso dá uma grande liberdade. Aliás, os mortos são úteis a muita gente: servem para os académicos os dissecarem e engrossarem os currículos e, sobretudo, não incomodam ninguém...
Mas repare: a APE, em 1995, concedeu-me o Grande Prémio da Crónica! Quando me telefonaram (por mero acaso, estava em Portugal) não acreditei e disse a minha mulher: "Deve ser uma graça... Enquanto os jornais não publicarem a notícia, não se diz nada a ninguém..." Pouco tempo depois, telefonou-me um jornalista e lá acreditei. Olhe, serviu-me para passar oito dias numa cidade maravilhosa: Amesterdão. E, também, para conhecer Beja, também uma cidade especial, onde recebi o prémio...
Fala de coerência? Limito-me à fidelidade a mim próprio, ao que aprendi e constitui a minha mundividência. Felizmente, tive grandes Mestres: José Régio, Tomaz de Figueiredo, João Gaspar Simões... E não só escritores: pintores como Hogan, Jorge Barradas e Abel Manta. E não só artistas: Feliciano Falcão (quem é de Portalegre sabe quem era), o Padre José Amarelo, meu irmão António Lopes Cardoso. Amigos como o Domingos Mariano, o Henrique Lima Freire, o Bernardo Santareno... o grande pintor veneziano, que passa fome, Aldo Zari. Deus foi generoso comigo! Não vale isso -encontrar gente dessa- muitíssimo, infinitamente mais do que o sucesso? Não é esse o único verdadeiro sucesso?
É autor de várias obras acerca do José Régio, que chegou a conhecer. Que importância tem a sua obra?
A importância de José Régio? Para a Literatura? Para mim? Seja como for, a resposta é, naturalmente, subjectiva, mas aí vai: considero Régio o maior escritor português do século XX e um dos maiores da Literatura Portuguesa. A Academia Sueca esqueceu-se dele e a nossa Literatura perdeu o Nobel que, realmente, a representaria e honraria. Um grande poeta, romancista, dramaturgo, ensaísta. Original. Pessoal. Renovou: abriu janelas que estavam fechadas. Quanto ao que, dele, recebi: quando alguém descobre uma obra, inicia-se o diálogo entre duas pessoas. Régio, num tempo de colectivismo forçado, apontou-me, salvando-a, a liberdade individual. O famoso -e quase gasto de citado e só não gasto por superior- Cântico Negro lá diz. “Sei que não vou por aí!” Imagina o que isso representa, para um adolescente, apertado na tenaz de certezas que ele adivinha falsas? As da burguesia instalada, do poder salazarista obsoleto, dos dogmas do realismo socialista? Representa um inestimável grito de liberdade. Mais tarde, li outra peça literária de Régio, que devia ser distribuída a todos os jovens que se interrogam, duvidam, hesitam: A Lição Inútil ou Carta a um Juvenil Individualista. A esse texto admirável, juntaria Le Retour de l’Enfant Prodigue, de André Gide e Adolescente Agrilhoado, de José Marmelo e Silva. Nenhuma lição é inútil, assim como nenhuma palavra se perde –pelo contrário, a palavra -verbo- é uma coisa preciosa que se deve pesar. Régio, Gide, Marmelo e Silva reivindicam o direito à independência, à iniciativa, ao risco. Reclamaram-no em tempos difíceis, quando fascismo e comunismo condicionavam, brutalmente, o Indivíduo. E, hoje? Qual o lugar do Indivíduo na sociedade do lucro-pelo-lucro e da amoralidade, do neoliberalismo que reinventou e aplica a nova escravatura? Quem consegue respeitar a sua vocação? Impor a sua diferença? Realizar a sua singularidade? Aquilo a que assistimos é à tragédia do homem-objecto, que Charles Chaplin denunciou, há setenta e dois anos, em Tempos Modernos. E de que maneira o paga o nosso desgraçado país, roubado e humilhado, sem indústria, sem agricultura, sem pesca (“Georges! Anda ver o meu país de Marinheiros”, convidava o Purinho, António Nobre... ó ironia!) –sem Cultura. Rasgado de Norte a Sul, pelo betão dos patos bravos e o alcatrão dos ávidos novos-ricos (à custa de milhões de novos pobres). E, já agora, citaria um livro de Manuel da Fonseca, Tempo de Solidão, que fala disso mesmo: do trágico desencontro humano, imposto pelas oligarquias insensíveis. Se ler A Chaga do Lado, de Régio, verificará que, denunciando o absurdo de uma evolução social regressiva, ou de um progresso-retrocesso, nunca deixei de falar do genial poeta de Vila do Conde.
Em Portugal valoriza-se a Cultura?
A Cultura, em Portugal -e não será assim por toda a parte?- foi, sempre, parente pobre. Defenderam-na as elites. Perseguiram-na os senhores instalados. Porque a Cultura incomoda, desequilibra, lança a dúvida, pode apontar (e aponta) a nudez dos reizinhos. A batalha de Alfarrobeira e a morte do Conde de Coimbra, D. Pedro, não representam uma vitória da reacção? E o que significa o auto de fé que vitimou António José da Silva? O exílio de Ribeiro Sanches? O provável assassínio de Damião de Goes? O “apagamento” de D. Pedro V? A retirada de Alexandre Herculano para Vale de Lobos? A proibição das Conferências do Casino? A censura, que nos amordaçou, durante a ditadura salazarista? Hoje, a concentração dos meios de comunicação nas mãos do capital? O que é que isso tudo quer dizer? Não tem interessado ao Poder o homo sapiens –importa-lhe o homem meio-de-produção. O “simplexismo” da nossa política vai acelerar o processo analfabetizante (da multiplicação dos analfabetos): uma vez que facilmente se arranjam títulos académicos suficientes, os jovens vão contentar-se com o mínimo necessário para sobreviverem no universo canibalesco, em que o desemprego se vulgarizou. A Universidade passará a segundo plano. E, em Portugal, só meia dúzia de carolas -inconscientes, tolos idealistas...- irão dar à Cultura a importância merecida. Porque o que se faz por aí (livros, pinturas, filmes, etc.) não satisfaz nenhuma exigência cultural –corresponde às exigências e leis do tenebroso mercado.
É, pois, um pessimista? Ou, apenas, um céptico?
Não. Não me considero pessimista nem céptico. Olho, nos olhos, uma realidade pobre. Uma realidade cultural pobre. Vivemos um mundo de coisas -de coisas que se vendem- e num mundo em que as pessoas são amestradas: ensinam-lhes que se deve comprar. Que se deve respeitar o lugar-comum. E segui-lo. Já viu os anúncios? Sai à rua e apanha com eles! Explicam-lhe o que deve fazer. E, se não fizer, não entra no jogo. E tem medo, cede. Faz. Amocha. Foi, sempre, assim? Não, nunca como hoje. Hoje, o Indivíduo foi siderado. Para ser Pessoa -para ser, realmente, uma Pessoa- é preciso fugir. Ainda há para onde: para onde uma casa ainda é uma casa, um cão, um cão, uma vaca, uma vaca, uma couve, uma couve. E o homem que fala connosco ainda é um homem. Um sítio onde se pode andar em cuecas. Ou nu. Ou com um capote alentejano. Ou todo vestido de flores. Como lhe apetecer. E acredito que há-de vir outro dia. Este é miserável. Alimenta-nos o mercado. O infame mercado. O mercado do neocapitalismo -da nova escravatura. De facto, Chaplin apontava a nossa vida de hoje: tolinhos a enroscar peças. Homens sem vontade, que enganam a pobreza e a angústia, carregando o desnecessário. Porque o necessário é amar e não se pode amar o que vem morto. As coisas não têm alma. A senhora a quem, no seu programa Café Mondego, chamou "a Rosinha das canções", quando canta, salva o mundo. Nada está perdido. Tudo está aí. A terra é úbere. Basta redescobri-la. Levantar a cabeça. Respirar. Encher o peito. Não ter medo e arrancar: em frente. Vivemos o tempo dos cobardes, dos que se deixam matar. É urgente viver -lutar pela vida viva.
Baptista-Bastos diz que o Manuel Poppe é “de uma linhagem crítica cujas raízes se podem, acaso, encontrar em Albert Thibaudet, nas teses da "Presença" e, decorrentemente, em João Gaspar Simões. Poppe é um homem informado, veemente e categórico, e, além disso, leitor voraz e de amplitude vária - virtudes hoje fora de moda”. Identifica-se com esta espécie de retrato?
Baptista-Bastos, amigo e camarada dos saudosos tempos do Diário Popular, que estimo e admiro, tem, generosamente, demasiado generosamente, não lho mereço, razão... Uma certa crítica francesa, ligada à Nouvelle Revue Française, a Gide (que é um extraordinário, superior ensaísta), a Jacques Rivière, a Ramon Fernandès e a Albert Thibaudet (Baptista-Bastos tem razão) ensinou-me muito. Tal qual, João Gaspar Simões (para mim, o maior crítico literário português de todos os tempos) e José Régio me esclareceram a apontaram caminhos.
Porém, eu posso citar Mestres como T. S. Elliot, ou Délacroix, ou Baudelaire. Ou Elias Canetti. Ou cartas de Henry Miller e Lawrence Durrell. Ou tantas páginas de Diário, de Thomas Mann. Citar muitos outros criadores-críticos.
A melhor crítica vem, sempre, creio eu, da pena dos criadores, quando pensam e repensam outros criadores. Olhe: João Gaspar Simões, além de um grande crítico, é um dos melhores novelistas portugueses contemporâneos: Pântano, Internato, A Unha Quebrada são obras excepcionais. Uma das desgraças da nossa actual Literatura liga-se aos trabalhos académicos, universitários, que invadiram o espaço, ao modo de bicho da madeira, usam uma esquisita abordagem que julgam "científica" e dão cabo dos livros de que falam. Feliz e habitualmente, são intragáveis. Escrevem uns para os outros e hão-de morrer abraçadinhos. Mas gastam muito papel -desarvorizam. Troçam -coitados!- daquilo a que chamam "crítica impressionista". Eu compreendo-os: falta-lhes sensibilidade artística para sentirem, para se impressionarem com as obras de Arte. Claro que não há regra sem excepção: lembro Vitorino Nemésio e David Mourão-Ferreira, dois professores universitários que me ensinaram muito (mas... também eram criadores, poetas...).
Claro que ao falar de crítica, refiro a estética -e, por isso, aprendi com Délacroix e com o crítico de Arte italiano Giulio Argan. Por exemplo."Hoje" é um momento difícil, desolado, quase desértico. Mas não passa de um "momento". Dez, vinte, trinta anos nada representam na História do Homem e da Cultura. Lembra-se do nouveau-roman (que até por cá piou, tristemente...)? Veio e foi-se. Poderia citar-lhe experiências artísticas que já morreram ou dentro em breve entrarão em agonia. Tudo isso será esquecido e, de novo, autênticos criadores nos trarão mundividências que hão-de enriquecer o mundo. Como lhe disse atrás, acredito na vida e na luta pela vida viva. Verdadeira. Na luta capaz de vencer a hipocrisia, a mentira, o oportunismo -a superficialidade fácil e capadora. "Hoje" já foi ontem e quem sabe o que nos vai dar o novo "hoje"?
Tendo sido crítico literário durante tantos anos, como caracteriza o momento actual da literatura portuguesa?
Como vejo a literatura portuguesa? A tentar sair de um vazio, que já se arrasta há mais de 30 anos. A sofrer a mediocridade da prosa descartável. A bracejar, quase afogada no aluvião da sociedade de socorros mútuos, que é a nossa praceta literata. Não esqueça, porém, que estão vivos um grande poeta: Herberto Helder; um admirável dramaturgo: Vicente Sanches; e uma romancista que, em centenas de páginas, ombreia com o genial Camilo e já entrou no Olimpo das nossas letras: Agustina Bessa-Luís. Alguns novos (entre os 30 e os 40 anos) despontam. O resto é palha. Farsa. Vigarice. E, ainda pior, inconsequência. Lembro, sempre, o que o impávido (e sorna) Gualdino Gomes, sentado na Brasileira do Chiado, disse a um romancista convencido (ou que os compadres tinham convencido): "O seu livro? Olhe: é desnecessário..."
Nem se safam as “vacas sagradas” do Nobel Saramago e do candidato ao Nobel Lobo Antunes? E os “novos”?
Considero Saramago e Antunes irrelevantes -desnecessários, como dizia, de outros, o já citado Gualdino Gomes. O Nobel distinguiu, mais de uma vez, leviana e oportunisticamente, escritores irrelevantes. E isso de ser candidato... Ora bem: o Júlio Dantas pim-pam-pum, até se candidatou (discretamente, nos bastidores do salazarismo, e sem alardes ridículos) a Presidente da República. "A Cada um o seu" (título feliz de Leonardo Sciascia); a cada um a sua tolice (toleima). Os novos? Fazem coisas novas e interessantes. Não me peça nomes! Teria de o citar à cabeça e logo os gulosos da feira literata denunciariam conluio...
Tem escrito muitas peças de teatro. Em Portugal, elas estão condenadas a ficar na gaveta?
Em Portugal, o teatro é outro parente pobre. Quero dizer: luta contra ventos e marés: parcos subsídios e, consequentemente, um certo afastamento. uma certa indiferença do público. O público tem de ser motivado, "chamado", e isso implica meios, que escasseiam. José Régio sofreu muito com o desinteresse (aí, de encenadores e críticos) e com a censura salazarista. Hoje, esta acabou, mas, repare, o teatro de Régio não é muito amado... Tal qual o não é o teatro, também admirável, de Vicente Sanches. Eu não me posso queixar: na gaveta (não gosto de guardar nada na gaveta) tenho duas peças, uma das quais o TMG vai apresentar este mês. Mas isso é pessoal. E, além, de Régio e Sanches, o teatro de Bernardo Santareno? De Grangeio Crespo? De tantos outros? Parece-me que a crise cultural -a Cultura é, de facto, o parente mais pobre e menos respeitado, talvez tenham medo dela- explica muito do impasse. Mas a luta contra os ventos e as marés ajuda a não perder a esperança. Há muita coisa podre no reino de Portugal -e em muitos outros reinos. A sociedade em que vivemos é suicida: não quer o Espírito, quer o lucro. E já começou a pagar o preço dessa política neoliberalista. Olhe para as bolsas, onde se trafica e especula, que entraram em pânico e o disfarçam mal. Nós sentimo-lo na carteira.
Há muitos anos que é cronista no Jornal de Notícias. Que assuntos lhe interessam? A actualidade social? Os livros? A política?
Sou colunista do Jornal de Notícias, há 30 anos. Era, aliás, na minha adolescência e juventude, e quando dividia muitos dos meus dias pela Guarda e por Celorico da Beira, o meu jornal diário. E, já agora, antes de responder à sua pergunta: em 30 anos, nunca nenhum artigo meu foi "censurado", nunca os responsáveis e camaradas me sugeriram cortes ou... moderação. Mas vamos à pergunta: não aceito a arte-pela-arte. Georges Bernanos dizia que a arte é feita para os homens, não são os homens que são feitos para a arte. Bernanos -meu Mestre, em muitas e muitas coisas, e repare que não sou católico, mas considero-me um homem religioso, a olhar a razão como redutora e a pressentir o Mistério ou, se quiser, o irracional, a força fantástica da Vida-, o genial autor de Journal d'un curé de campagne foi um interveniente apaixonado. Entendo-o muito bem. Todo o artista intervém. Não às torres de marfim: escrever para os outros, o mais clara e directamente possível -eis ao que aponto. Assim, arte, sociedade e política ocupam-me as horas, não sendo, nem querendo ser um político filiado, "profisssional". Da minha nau catrineta, clamo: a minha alma é só de Deus!
Nos últimos tempos, tem dedicado muito atenção às questões da Educação. É um assunto que o preocupa muito?
Preocupa-me muitíssimo. É o fundamento de toda e qualquer sociedade. E sempre a sociedade será mais culta, mais rica, mais avançada quanto mais os seus governos investirem na educação e na investigação. Claro que poderia -e devo- citar-lhe os gregos, exemplo maior, para o mundo ocidental. Basta ler A Apologia de Sócrates. E não confundir Cultura e Civilização. A primeira é o Espírito, a segunda a máquina. Conjugar as duas realidades não é fácil -e, sobretudo, não agrada à civilização neocapitalista, que se impôs e sobrevive na ganância das coisas e do ganho e arrenega tudo quanto não rende. A Cultura não garante o futuro das multinacionais, antes pelo contrário. A Cultura procura dar um sentido à vida do homem, que anda por aí só osso e ansiedade. Também me aflige constatar que, em oitocentos anos de história, o desenvolvimento cultural andou, por cá, mais devagar que um caracol tísico.
O Manuel Poppe tem preservado as amizades que construiu desde a infância na Guarda. Que significado tem a amizade para si? É também uma maneira de “voltar” à “sua” Guarda?
Amor e Amizade, ou vice-versa, é o que preserva o homem e impede que ele se transforme em morto-vivo. Guardo os Amigos como quem guarda um tesouro. Muitos já morreram -e até esses falam comigo, dentro de mim. Voltamos, juntos, os vivos e os mortos, à Guarda e aos outros lugares que compartilhámos. Que bom é compartilhar, dividir, trocar os pequenos milagres do quotidiano maravilhoso (maravilhoso, mesmo quando violento, difícil)! Quem não ama (e, insisto, a Amizade é Amor) não vive. Arde no tal Inferno, agora e aqui, a esbracejar num deserto. Cristo disse-o, divinamente.
Como têm sido recebidos pela crítica, aqui ou no estrangeiro, os seus romances? A opinião da crítica interessa-lhe?
Normal, como dizem os são-tomenses. Olhe, Crónicas Italianas até mereceu uma crítica muito elogiosa do último crítico literário português: João Gaspar Simões (lá estou eu a deitar achas na fogueira... mas é verdade!...). Não me queixo da crítica, lastimo o silêncio. Lastimo o silêncio dos que o praticam por não gostarem das minhas coisas (nós gostamos, sempre, que gostem de nós); lastimo o silêncio dos que, através dele, se vingam; lastimo o silêncio dos covardes, que não se atrevem a ir contra o silêncio dos outros, porque andam a tratar da vidinha. Sabe que somos um país de maria-vai-com-as-outras e que as marias têm medo de andar sozinhas...
Trabalhou, como diplomata, em vários continentes. O que singulariza a nossa cultura, em contraste com a de outros povos?
O mesmo que faz de si uma pessoa diferente de um estrangeiro. Aquilo que está na nossa poesia, novela, teatro, pintura, cinema -e que não está na dos outros países. A nossa paixão, a nossa nostalgia, o nosso pessimismo, a nossa relação com a morte. Unamuno dizia que somos um povo de suicidas... Eu sei que tudo quanto enunciei se pode reencontrar noutro povo -mas não à maneira portuguesa. E essa é indefinível; ou, melhor, irredutível a uma definição. Vi italianos -um povo de arte-, deslumbrados, diante de quadros de Ângelo de Sousa e Noronha da Costa; dos nossos azulejos; dos filmes de Manoel de Oliveira. Diante dos concertos de Maria João Pires e de Cremilde Rosado Fernandes. Ouvi, em Itália, em África, em Israel, em Marrocos, elogios superlativos à poesia de Mário de Sá-Carneiro e a O Barão, de Branquinho da Fonseca. A Camilo. São exemplos, não posso citar tudo (e ainda bem: é sinal que foi muito). E garanto-lhe que me orgulhei e me emocionei com o que vi e ouvi.
Manteve um programa sobre livros na Televisão, durante vários anos. Actualmente, as televisões e os outros órgãos de informação dedicam alguma importância aos livros e à leitura?
A televisão, muito pouco. Ressalvo o trabalho muitíssimo positivo de Francisco José Viegas. Os jornais fazem o que podem e honra lhes seja. O que é triste é que, antes do 25 de Abril, o espaço dedicado à Cultura, na RTP e nos jornais fosse muito maior. Custa ouvir e dizer isto, mas por isso mesmo é que se deve dizer.
Em Itália foi distinguido pelo Presidente da República e pelas cidades de Florença e Veneza. Em Portugal, apesar da importância e dimensão da sua obra, é quase um desconhecido. Isto não o magoa?
Desconhecido de quem? Dos que silenciaram Régio, Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, Graça Pina de Morais, Vicente Sanches? Ah, esses não me atingem e não será por causa deles que deixarei de escrever. Às vezes, basta um leitor para nos levantar a alma. E olhe que têm aparecido.
Em que está a trabalhar neste momento? Tem inéditos, prontos a publicar?
Trabalho na adaptação ao teatro de um contarelo (expressão de outra "praticamente desconhecida", Irene Lisboa...), A Acácia Vermelha, que faz parte do meu livro Um Inverno em Marraquexe, e num romance. Inéditos? Uma outra peça de teatro, espécie de divertimento, e um Diário, que escrevo há 50 anos e a cuja publicação, como deve calcular, não assistirei...
Finalmente, como olha para a Guarda de hoje?
Aparentemente, diferente (os patos bravos sujaram-na); profundamente, igual. Nobre, austera, inteira, vertical. E essas são qualidades inestimáveis. Claro que, culturalmente, a Guarda avançou imenso -e o Américo é um dos principais responsáveis por isso. Claro que, socialmente, a Guarda também evoluiu muitíssimo. E há que sublinhar o espírito egitaniense que a diferencia e a honra. Que a enriquece. O beirão não é fácil de roer (de abastardar) e o guardense, especialmente.
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