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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Uma voz na pedra, de António Ramos Rosa



Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.


António Ramos Rosa,
Facilidade do Ar, 1990

A procura da palavra justa para dizer as "coisas nuas", a reflexão sobre a realidade e a possibilidade dessa palavra é, talvez, o tema da poesia de António Ramos Rosa. As metáforas da claridade expressam a felicidade viva da apropriação do impronunciável através da palavra poética tão esperada: Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra, conquistada através de um desejo, de um esforço, de uma viagem.

A sua poesia foge da dicotomia, da disjunção, da determinação, num espaço cada vez mais aberto e ilimitado, que se adequa cada vez melhor à manifestação "do que não tem nome". O poeta, que procura entrar em consonância com esse horizonte do real, torna-se também ele corpo místico e mítico do universo, onde se conciliam por fim todos os contrários. Quando escreve Amo. Amo em total abandono. ou Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra revela-se como alguém que vive esperando a libertação, alguém que ama a luz (palavra) que possa abrir o túmulo de pedra e rasgá-lo.


António Ramos Rosa > Poeta e ensaísta português, natural de Faro, nasceu a 17 de Outubro de 1924. Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, Ramos Rosa tomou o rumo para Lisboa, depois de ter passado a juventude em Faro. Na capital, vivendo intensamente a vitória dos Aliados, trabalhou no comércio, actividade que logo abandonou para se dedicar à poesia.

A. R. R. recebeu vários prémios de poesia, o primeiro dos quais pela obra Viagem Através de Uma Nebulosa, partilhado com Henrique Segurado. Em 1980, o Prémio do Centro Português da Associação de Críticos Literários, pelo livro O Incêndio dos Aspectos; em 1988, o Prémio Pessoa; em 1989, o Prémio APE/CTT, pela recolha Acordes, e, em 1990, o Grande Prémio Internacional de Poesia, no âmbito dos Encontros Internacionais de Poesia de Liège. (…) É geralmente tido como um dos grandes poetas portugueses contemporâneos.

Fontes:
Rosa, António Ramos. Antologia Poética, Lisboa: Dom Quixote, 2001.
Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998.
www.astormentas.com

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