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domingo, 19 de junho de 2011

"Como Traduzir o Desejo?"


Der Himmel uber Berlin - 1/3 from RSM on Vimeo.


"Como Traduzir o Desejo?"
Apontamentos erráticos sobre o filme "Asas do Desejo"*

por Henrique Marcusso**

"Quando a criança era criança
Ela caminhava com os braços balançando
Ela queria que o riacho fosse um rio,
O rio uma torrente
E essa poça d'água, o mar.

Quando a criança era criança,
Ela não sabia que era criança.
Tudo era inspirado nela,
E todas as almas eram uma só.
Quando a criança era criança,
Ela não tinha opinião sobre nada,
Não tinha nenhum hábito
Ela se sentava de pernas cruzadas,
Saía correndo de repente.
Tinha um redemoinho no cabelo
E não fazia caras quando ia tirar fotografias.

Quando a criança era criança,
Era a época dessas perguntas:
Por que eu sou Eu
E não Você?
Por que eu estou aqui e
por que não lá?
Quando começou o tempo
E onde termina o espaço?
A vida sob o sol não é apenas um sonho?
Não seria tudo o que eu posso ver, ouvir e cheirar
Apenas a aparência de um mundo anterior a este mundo?
Existem mesmo o Mal
E pessoas que são realmente más?
Como é que eu, o Eu que eu sou,
Antes que eu viesse a ser, não era ?
E como é que uma dia eu,
o Eu que eu sou, não mais serei
o eu que Eu sou?" ***

Peter Handke.

"O CÉU SOBRE BERLIM"


A primeira questão que nos assalta ao pensar no filme "Asas do Desejo" é seu título. No original em alemão lemos "Der Himmel über Berlin" (1) que quer dizer "O Céu sobre Berlim". Por que renomeá-lo?

Obviamente, deve haver aí razões próprias do mercado cinematográfico. Talvez para tornar o filme mais acessível, mais universal, menos localizado, acharam por bem rebatizá-lo com um título mais explícito, o qual mais diretamente pudesse dizer/revelar seu tema principal. Mas, teria realmente sido uma boa escolha?

Embora muito poético, o título "Asas do Desejo" é associado imediatamente ao conflito central do filme, ou seja, ao de um anjo que deseja. E isso facilita muito o trabalho para as resenhas, os roteiros rápidos sobre entretenimento em jornais, para o grande público que precisa de uma "dica" clara sobre o filme que estará escolhendo para a noite de Sábado. "Asas do Desejo" é sem dúvida um belo título, pois nos inspira imagens do tipo: "deve ser um filme sobre os vôos do desejo" ou "o desejo voa, o desejo tem asas, ele flui, o desejo vai a qualquer parte". Nada mais justo. Por outro lado, por que veríamos um filme sobre o céu de Berlim? O que nos atrairia para tanto?

Berlim, uma cidade dividida - na época do lançamento do filme (1988). Uma cidade marcada pela disputa do poder mundial, palco da batalha ideológica da Guerra Fria, traumatizada pela cicatriz do Muro que separava dois mundos, uma fronteira mais que apenas geográfica, objetiva, concreta. Berlim-máscara, Berlim-vitrine. Uma zona de tensão, de interditos, de cortes, mas também de fluxos invisíveis de energias, de subjetividades, zona de alta energia, zona do desejo. Hitler, Lenin, Kennedy, Helmut Kohl, Mitterrand, Reagan, Thatcher, Nina Hagen, Punks, U-Bahn, S-Bahn, Underground, Alternativos, Os Verdes, Inácio de Loyola Brandão, Ubaldo, Gorbachov, Nick Cave, Pink Floyd, Love Parade, Música Eletrônica, Nefertiti. O mundo mudou?

Sim, o mundo mudou. E a mudança se deu em Berlim. Berlim foi a vila do mundo. A praça central onde tudo aconteceu. Nesse sentido, o título original em alemão torna-se mais interessante: "Der Himmel über Berlin" pode significar o que estava escondido, o que pairava sobre nossas cabeças na época. O desejo de Berlim era o desejo do Homem de superar sua divisão, de tornar-se um com o todo, de colar suas partes, de resgatar seus elos perdidos, de voltar ao paraíso, mesmo que este paraíso implicasse um mergulho na temporalidade e o encontro de sua finitude, de sua mortalidade, para assim restaurar o Sentido. O Espírito tornando-se Matéria. Fluir e enfim exaurir-se. Cumprir um destino. O Anjo tornar-se Homem. A poça d'água tornar-se mar. O mar de intensidades e forças que é o mundo. O Homem tornar-se Homem.

A condição humana é como o circo endividado do filme. O sonho do circo-círculo paradisíaco, da inocência perdida que não tem mais lugar, da Poesia que não produz Capital, dos anseios que não levam a nada, da esperança equilibrista, dos bêbados e drogados que não operam na materialidade e que só deliram. Qual mundo desejamos?

Desejamos um mundo...


DESEJO: FREUD, ESQUIZOANÁLISE E NIETZSCHE


Pensemos sobre o Desejo. Para a psicanálise, o desejo está ligado ao "Complexo de Édipo". O desejo é um fantasma, uma falta, é a busca de restauração de um estado em que supostamente já estivemos, no abrigo do amor materno, no qual o corpo da Mãe era o mundo que não impunha diferença entre o Eu e o Outro. Não havia privação, não havia oposição, não havia limite. Não havia o Outro. Tudo era um só. Segundo Freud e os psicanalistas (2), vemos todos os objetos de satisfação do desejo como substitutos daquele estado de plenitude onde tudo o que queríamos era realizado, não havia frustração, necessidade, falta, privação.

Ora, se não havia privação, também não haveria necessidade em tal estado. Não haveria Desejo!

O desejo só passaria a existir quando nos tornássemos um outro, separado. Um outro aparte, em um mundo aparte. O desejo seria condição de nosso ser único, de nossa individualidade. O desejo fundaria o sujeito (2), seria constituinte do sujeito. A partir do momento em que desejamos, entraríamos para o mundo da temporalidade, da subjetividade e da realidade. No entanto, ainda segundo Freud, o objetivo do desejo é nostálgico, é o de retornar àquele estado onde não desejávamos. Daí, conclui-se que o desejo busca sua instinção, o fim do desejo e consequentemente o fim do sujeito, o fim do tempo. O desejo seria um paradoxo: a busca da Vida e a busca da Morte. Estaríamos então inexoravelmente presos a este dilema existencial? O que mais poderia significar a palavra Desejo? Que outro mistério ela abarcaria que nos pudesse livrar de tal maldição? Seriamos apenas seres sem futuro, vivendo de um passado dourado ao qual já não se pode voltar?

Para nosso consolo, a palavra "Desejo" tem sua origem latina em "Sidus" que significa estrela (3), ou seja, uma distante luz presente no céu noturno. As estrelas sempre foram marcos de orientação espacial-temporal, coordenadas que auxiliavam os homens em suas atividades e jornadas. Estão também relacionadas ao destino, ou seja, ao cumprimento de um tempo e a realização de algo, de um significado dentro desse tempo, à busca e à descoberta de uma trajetória e de uma escolha de caminho.

No pensamento contemporâneo, podemos também destacar a clara oposição de Deleuze e Guattari às idéias de Freud. Para eles, somos "máquinas-desejantes" (3) produtoras de realidade. O desejo seria então "produção" - criação do novo! Desejo seria então Devir. Esses dois pensadores franceses inspiraram-se na obra de Nietzsche - e em sua "Filosofia do Porvir" - e assim redefiniram o conceito de desejo, anteriormente apropriado pelas tendências pessimistas dos séculos XIX e XX. Seria assim proveitoso para nossa discussão elucidar uma passagem específica do "Assim falava Zaratustra" (4), a qual aparentemente não encontrou ainda uma tradução digna nem em Português nem em Inglês, quando se refere especificamente a questões do Desejo e de sua afirmação.

Assim, vejamos: Na Terceira Parte do Zarathustra encontra-se o capítulo "A Outra Canção para Dançar" (4), na qual parece haver um mal-entendido quanto ao significado da palavra "Lust". Tanto em algumas traduções em inglês (5) quanto em português (6), insiste-se em dar-lhe o significado de "Alegria" ou "Prazer", quando de fato, e principalmente em seu uso corriqueiro, "Lust" é mais usada como "Desejo" ou "Anseio" e "Vontade", o que confere um sentido deveras diferente à mensagem do texto.

Contrapondo-se ao Niilismo e ao Pessimismo de Schopenhauer - que inspirado pelos ideais da ascese e do Budismo pregava que a solução para o sofrimento humano era estirpar sua causa primordial, ou seja, o Desejo (pois, se não desejássemos, não sofreriamos...) - Nietzsche escreveu um poema sobre as doze badaladas da meia-noite que despertariam a humanidade. No original em alemão (4), teríamos:
"Eins - Oh Mensch! Gieb Acht!
Zwei - Was spricht die tiefe Mitternacht?
Drei - 'Ich schlief, ich schlief
Vier - Aus tiefem Traum bin ich erwacht:
Fünf - Die Welt ist tief
Sechs - Und tiefer als der Tag gedacht.
Sieben - Tief ist ihr Weh;
Acht - LUST, tiefer noch als Herzeleid:
Neun - Weh spricht: Vergeh!
Zehn - Doch alle Lust will Ewigkeit,
Elf - will tiefe, tiefe Ewigkeit!'
Zwölf!"

Em Inglês, temos a tradução de "Lust" como "Joy" (5) e em Português como "Prazer" (6). Façamos, pois, a substituição desta tradução de Lust como Prazer por Lust como Desejo e vejamos o resultado. Numa versão livre, mas mais próxima do original teríamos:
"Um - Oh Homem! Preste Atenção!
Dois - O que diz a profunda voz da Meia-Noite?
Três- 'Eu dormi, eu dormi
Quatro - De um sono profundo despertei-me:
Cinco - O mundo é profundo,
Seis - E mais profundo do que o dia pensava.
Sete - Profunda é sua dor
Oito - O DESEJO, mais profundo ainda
do que a dor do coração:
Nove - A dor diz: Passe!
Dez - Mas, todo o Desejo quer a eternidade,
Onze - Quer a profunda, profunda Eternidade!'
Doze!"

Ainda que "Joy" possa ter alguma relação com o francês "Joie" (obviamente relacionado ao Português "gozo"), é muito diferente o conceito de prazer, gozo, alegria e o de Desejo, dentro do contexto deste poema de Nietzsche, o que pode também iluminar nossa compreensão sobre o desejo para Deleuze e Guattari, bem como sobre este belíssimo filme de Wim Wenders.


Para 3 cidades de nosso Desejo: Berlim, São Paulo e Marília...

Henrique Marcusso
E-mail: psicocine@yahoo.se

São Paulo, Junho de 2001.


NOTAS

*Notas para discussão do filme "Asas do Desejo" ("Der Himmel über Berlin", Dir. Wim Wenders, Alem., 1988) dentro do terceiro encontro (22 e 23/06/01) do Psicocine (ciclo de filmes e palestras sobre a psicologia do cinema) promovido pelo Grupo PET/Biblioteconomia e pelo projeto "Cinema-Experiência" (grupo de exibição e debates sobre cinema), com o apoio do Departamento de Ciência da Informação, Departamento de Ciências Políticas e Econômicas, Departamento de Filosofia, Departamento de Sociologia, Conselho de Curso de Filosofia e Conselho de Curso de Biblioteconomia da UNESP - Faculdade de Filosofia e Ciências - Câmpus de Marília, SP, entre maio e outubro de 2001.

**Henrique Marcusso é psicólogo pela PUC/SP, ministra cursos sobre a "Psicologia do Cinema" e sobre a obra do cineasta sueco Ingmar Bergman. Em São Paulo, mantém o "BV Estúdio - Cursos Culturais", escola de Arte e Cultura.

***Trecho do poema do escritor Peter Handke no filme "Asas do Desejo". Tradução: Henrique Marcusso.

Site sobre o filme "Asas do Desejo": wim-wenders.com/​


REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

1 "Der Himmel Über Berlin", Ein Filmbuch von Wim Wenders und Peter Handke, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1990. (Roteiro original do filme).

2 KEHL, Maria Rita. O desejo da realidade. In: NOVAES, Adauto (Org.). O desejo. São Paulo: Compainha das Letras, 1999.

3 BAREMBLITT, Gregório. Introdução à esquizoanálise. Belo Horizonte: Biblioteca do Instituto Félix Guattari, 1998.

4 NIETZSCHE, Friedrich. Also sprach Zarathustra. Berlin/New York: Gruyter, 1993.

5 NIETZSCHE, Friedrich. Thus spoke Zarathustra. London: Penguin Classics, 1969.

6 NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1991. v. 1 (Coleção Os Pensadores).


Agradecimentos especiais a André de Araújo, sem cujo empenho o Desejo desse projeto não teria sido concretizado...
Parte 2:
http://vimeo.com/​16812405



Parte 3 (final):
http://vimeo.com/​16798860








http://vimeo.com/16813996

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