1.
Livros usados, do meu tempo
de coca-bichinhos em alfarrabistas
e livrarias de ocasião,
folheio-vos hoje e decifro os sublinhados
que fui deixando em cada leitura.
Quando o caminho já deixava antever a derrota
construí uma cidadela –
confinava aí parte dos meus dias –
com as vossas páginas,
falcoaria
que não admitia captura, manutenção e adestramento:
mal lhes largava a sombra iam em demanda
de uma luz perdida.
Se vos lembrais, livros usados, reuníamo-nos para
fazer caminhadas solitárias,
longe das matilhas
que na outra margem cultivavam
uma historiografia sem feitos
grandiosos,
uma filosofia em alcova emprestada.
Livros usados, se vosso saber é vendido a desbarato,
se vosso rasto se perde na obscuridade
dos que não atendem devidamente
aos sinais,
ainda sois para mim
torres de vigia na escuridão,
agulhas magnéticas
onde se concilia a ascese
e a caligrafia indefinida
do amor.
2.
Pequenos teatros itinerantes, óperas de bairro,
fragmentos fílmicos de um tempo recuado são,
em períodos de seca e pilhagem servindo de abrigos
e ensinando-nos a escutar a orquestra interior,
trágica e soberba.
Na observação do mundo
tomam por base o conhecimento que retiram de nós:
reflexão, sonhos, viagens.
Tufões, tesouros de seiscentistas naus,
outras vozes
vindas de pequenas embarcações
por caminho errado irão
aqueles que em estufas pretendam
embalsamá-los, a esses que são como crianças
alvoraçadas em jardins
e em pátios circundados por prédios.
Exigem atenção e respeito absoluto, certamente;
mas mais do que isso
detença e amor
e aqui e ali infidelidade:
trocarmos o seu odor a cãs de família
pelo prazer de um corpo batido pelas ondas
ou uma conversa com um amigo
que há mais de um ano não ri.
Alguns preferem o recanto das bibliotecas
para proferirem a primeira palavra;
mais estroinas, parecem outros dar-se melhor
em praias
onde adquirem um ritmo deambulatório, secreto.
Especial profundidade alcançam
os que nos aventuram
por florestas impraticáveis, antes de se expandirem para dentro da memória,
esse zoo doméstico.
Pela manhã, ao fazer a ronda habitual
pelas livrarias encontro os recém-saídos
colocados atrás das montras.
Com eles a noite irei reacender
uma esquecida prece.
Jorge Gomes Miranda
In:A Hora Perdida, pp. 16-19 (Campo das Letras 2003)