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quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Uma Canção Desesperada

Emerge a tua lembrança desta noite em que estou.
O rio junta ao mar o seu lamento obstinado.

Abandonado como os cais na madrugada.
É a hora de partir, ó abandonado!

Sobre o meu coração chovem frias corolas.
Ó porão de escombros, feroz caverna de náufragos!

Em ti se acumularam as guerras e os voos.
De ti bateram as asas os pássaros do canto.

Tudo devoraste, como faz a distância.
Como o mar, como o tempo. Tudo em ti foi naufrágio!

Era a hora alegre do naufrágio e do beijo.
A hora do estupor que ardia como um farol.

Ansiedade de piloto, fúria de mergulhador cego,
turva embriaguez de amor, tudo em ti foi naufrágio!

Eu fiz retroceder a muralha de sombra,
caminhei para além do desejo e do acto.

Ó carne, carne minha, mulher que amei e perdi,
a ti nesta hora húmida evoco e faço canto.

Como um copo albergaste a infinita ternura,
e o esquecimento infindo estilhaçou-se como um copo.

Era a negra, negra solidão das ilhas,
e ali, mulher de amor, teus braços me acolheram.

Era a sede e a fome, e tu foste uma fruta.
Era o luto e as ruínas, e tu foste o milagre.

Ah mulher, não sei como pudeste conter-me
na terra da tua alma e na cruz dos teus braços!

O desejo de ti foi o mais terrível e curto.
o mais revolto e ébrio, o mais tenso e ávido.

Cemitério de beijos, ainda tens fogo nas tumbas,
ainda as uvas ardem debicadas por pássaros.

Oh a boca mordida, oh os beijados membros,
oh os famintos dentes, oh os corpos trançados.

Oh a cópula louca de esperança e de esforço
em que nós nos juntámos e nos desesperámos.

E a ternura, leve como a água e a farinha.
E a palavra que quase nem nascia nos lábios.

Foi esse o meu destino e nele viajou a vontade,
e nele caiu a vontade, tudo em ti foi naufrágio!

De tombo em tombo ainda tu ardeste e cantaste.
Marinheiro de pé na proa de um navio.

Ainda floresceste em cantos, ainda rompeste em correntes.
Ó porão de escombros, poço aberto e amargo.

Pálido mergulhador cego, desventurado fundeiro,
Descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio!

É a hora de partir, a dura e fria hora
que a noite prende a todos os horários.

O cinturão ruidoso do mar abraça a costa.
Surgem frias estrelas, emigram negros pássaros.

Abandonado como cais na madrugada.
Apenas a sombra trémula se me torce nas mãos.

Ah para além de tudo. Ah para além de tudo.
É a hora de partir. Ó abandonado.

In Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada, Trad. de Fernando Assis Pacheco, Edições Dom Quixote
Pablo Neruda [Ricardo Eliecer Neftalí Reyes Basoalto] (n. 12 Jul 1904, Parral, Chile; m. 23 Set 1973 em Santiago, Chile).

via

http://nothingandall.blogspot.pt/

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