«O corpo está entre os principais conceitos da Educação Física, ele motiva reflexões sobre essa educação que propõe uma mente sã e um corpo são. Esse célebre adágio do literato latino Juvenal nos mostra que, já na cultura clássica, havia preocupação pelo corpo e pelo espírito. O que nos faz constatar que desde os primórdios aos nossos dias, a educação por meio da atividade física esteve ligada ao propósito de cuidar do corpo.
Em tempos em que é comum vermos o corpo tomado como objeto e sendo mecanicamente preparado para obter altos rendimentos, aperfeiçoado segundo padrões de estética e de performances,visando à obtenção do corpo modeladamente perfeito, faz-se urgente o estudo desse fenômeno. Pois, compreendido como produto e negligenciado em seus aspectos essenciais pela própria Educação Física (quem sabe, pela exaustão de suas teorias) nos propomos a perguntar pelo corpo no que tange sua existência mundana, histórica e cultural. De modo que, seria insuficiente a análise do corpo apenas como um organismo, explicado pela mecânica do movimento ou do gesto esportivo. Há de se colocar a questão do corpo no campo filosófico, no qual a separação corpo-consciência e problema ainda está em aberto.
O homem sempre teve dificuldade de compreender a si mesmo como uma unidade. Por questões míticas ou religiosas sempre se entendeu composto de duas partes distintas e separadas: o corpo (material, físico) e a alma (espiritual, consciente ou intelectual). Essa cisão parte do princípio de que o ser humano se dá em dois cotos, em que, o primeiro é o corpo e o outro o intelecto1. A esse fenômeno chamaremos dicotomia psicofísica, o que remonta à dualidade sujeito e objeto (ou seja, o homem e o mundo), tradicional ao pensamento fi- losófico. Esses elementos integram questões que habitam a pauta dos filósofos desde a antiguidade, como podemos ver em uma contextualização de alguns autores da história da Filosofia.
A referida dualidade já aparece no pensamento grego no século IV a.C.. Com Platão (428 – 348 a.C.), ela parte do pressuposto que a alma, antes de se encarnar, teria vivido a contemplação do mundo das idéias. Após isso, a alma decairia desse mundo encarnando em um corpo que, para o autor consistiria em um invólucro desta. Aprisionada no corpo, a alma humana se degradaria em duas, a primeira superior (a alma intelectiva); a outra inferior (a alma do corpo).
À luz do método
fenomenológico o corpo é tomado como um fenômeno, na medida em que a consciência
é unidade com seu mundo
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René Descartes desenvolveu suas idéias duvidando da realidade do mundo e do corpo, até chegar à primeira verdade indubitável: o cogito. Assim, fez emergir o sujeito, constituído de duas substâncias, uma de natureza espiritual, que é o pensamento; outra de natureza material, que é o corpo |
Essas idéias contrastam com certas concepções da filosofia de Platão. Por exemplo: em uma cultura como a helênica, na qual tem berço não só a filosofia mais os esportes olímpicos, o autor não poderia deixar de valorizar a ginástica. Mas, mesmo isso, confirmaria a superioridade da alma sobre o corpo. Para o filósofo, a Educação Física (ginastiké) traria o equilíbrio entre estas partes, pondo o corpo na posse de saúde perfeita e permitindo que a alma se desprenda do mundo do corpo e dos sentidos para concentrar na contemplação das idéias. O que não faz que o filósofo deixe de entender as coisas do mundo em sua multiplicidade como derivadas das idéias, ou seja, a cada aspecto do mundo dos fenômenos corresponderia a uma essência imutável no mundo das idéias.
Mesmo na Grécia clássica, o conceito de corpo e de ginástica, são mais que objeto e exercício, ambos compõem a cultura da beleza e do bem (Platão demonstra que, em sua juventude, admirava a beleza física, mas, com o amadurecimento, descobriu que a beleza da alma é mais preciosa que a do corpo). Todavia, as concepções do pensamento de Platão, embora tenham tido grande penetração em sua época e influenciado escolas filosóficas posteriores, não eram unânimes. Divergindo de Platão, seu discípulo Aristóteles (384 -322 a.C.) reconhecia o papel do corpo e dos sentidos no conhecimento, não o considerando “cárcere da alma”.
Séculos adiante, a Igreja exercia grande influência política e econômica na população e não permitia que houvesse preocupação com o corpo, considerando- o. Nessa época, mais tarde denominada por alguns teóricos do Renascimento como o “período das trevas”, o corpo, no âmbito religioso, ocupava lugar de subordinação, sendo alvo de punição e de regulação. Esse desprezo pelo corpo inferioriza-o, fazendo com que ele fosse visto como a prisão da alma e o responsável pelas faltas cometidas.
Durante o período medieval, os problemas filosóficos em relação ao corpo continuaram a estar no foco do debate entre pensadores. Contudo, a fi- losofia propriamente dita era dependente da teologia. Para a doutrina cristã, determinante dessa compreensão teológica, o corpo era considerado sinal de pecado e degradação, acerca disso se desenvolveram práticas de purificação estimuladas pelo ascetismo (doutrina moral que desvaloriza os aspectos corpóreos e sensíveis do homem, ou ainda, mortificação da carne e a purificação corpórea).
Santo Agostinho (354-430 d.C.) partiria de algumas dessas compreensões teológicas, entretanto, teve seu pensamento influenciado por Platão ao considerar o homem uma mistura de alma e corpo, vendo a alma como interioridade, como autoconsciência. Isso fez com que Agostinho contrariasse a compreensão comum que a teologia teria do corpo, propondo idéias que dignificavam o corpo humano, ao pensá-lo como entreposto do espírito. Com esse filósofo, fica marcado o esforço de não perder de vista a corporeidade humana como um fenômeno factual, imanente e relativo à vida, mesmo contrariando uma teologia exacerbada.
Com tudo isso, em grande parte do Medievo, havia tabus endossados pela Igreja acerca do corpo e seu conhecimento. Isso atrasou em séculos o avanço, não só das ciências médicas, como também das antropologias. Apenas tardiamente surgiria um olhar livre de censuras do homem sobre si próprio. O olhar da consciência racional possibilitado com o Renascimento fez outro entendimento do corpo, considerando- o objeto da ciência, em sua natureza física e biológica.
Apenas com a Revolução Científica do século XVII, especificamente com René Descartes (1596 - 1650 d.C.) dar-se-ia uma filosofia independente da tradição cristã e novamente original. Depois dos gregos, o sistema cartesiano inaugura um conceito novo de homem, de mundo e de Deus.»
via
http://www.revistafilosofia.com.br/ESFI/Edicoes/17/artigo70334-1.asp
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