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domingo, 28 de julho de 2013

"Sem Receita"

Crónica "Sem Receita" – Revista Ler
Por Inês Pedrosa

Os Engajados

As meninas que me desculpem e passem adiante se o assunto colidir com os seus perfumes estivais, mas a discriminação ainda é um tema contemporâneo. A discriminação entre homens e mulheres, por exemplo. Não é preciso ser-se gaja para se notar isso; por acaso, no que se refere à ficção portuguesa contemporânea, tenho encontrado o assunto sobretudo em páginas, algumas delas excelsas, da lavra de gajos. Estão à vontade. Fica-lhes bem assinalar a injustiça que assola a outra metade da espécie. Mas uma mulher engajada incomoda, como dantes incomodava uma mulher que risse alto ou levasse os amantes pela trela na via pública. É uma afronta às outras, o que eu compreendo. Não tenho é paciência para me deter nessa compreensão, que a vida é demasiado curta para andar a saltitar penosamente em saias travadas.
O engajamento passou de moda, embora as suas causas não tenham diminuído, antes pelo contrário. Os fossos tornaram-se demasiado evidentes; como a arte é o contrário da evidência prefere falar de fronteiras e de busca de identidade. Ainda por cima é mais comercial. Da senhora dos livros de sexo a chicote ao Philip Roth ( que aliás também não desdenharia a sua chibatazita) anda tudo em demanda identitária, revelando o íntimo universal de cada um de nós. Um gajo pode continuar a ser engajado desde que não o confesse muito. Já uma gaja… bom, uma gaja continua a ser uma gaja, e tudo o que escrever há-de vir-lhe do útero ou da vagina ou dos filhos que teve ou dos que não quis ter. Nunca mais há modos, é o que é.
Não é verdade que não haja escritores politicamente empenhados em Portugal (agora não estou a distinguir sexos; também consigo ser ecuménica, vêem, meninas?). A verdade é que esses não são os que estão nas montras dos media. Aliás, eu não sei o que é um escritor sem empenhamento político. Nomeiem-me um. Não se cansem: eu conheço a lista. Simplesmente, não escrevem nada que honestamente eu consiga ler até ao fim. Não são o Tolstoi nem a Virginia Woolf nem o Dostoievski nem a Duras nem o Camões ou o Kundera. Nem a Yourcenar ou Nabokov. Quando me refiro a empenhamento político não penso em ideologias de esquerda ou direita (é importante saber distingui-las, evidentemente), mas sim numa visão do mundo e na capacidade de ter um comentário inteligente e original sobre ele. É uma coisa para a qual não basta ser-se erudito e irónico. A ironia é o sushi do cérebro: um alimento bonito de se ver, saudável e de fácil digestão. A dobrada à moda do Porto não será tão digestiva, mas demora mais a esquecer. Como os livros do Camilo Castelo Branco. Ou da Agustina, que nunca ganhou os bonitos prémios da língua inglesa porque nunca foi traduzida para esse esperanto da modernidade. Consta que é «muito difícil». E fala demasiado de mulheres, pelo menos para quem pertence a esse mesmo sexo.
Há dias ouvi uma jovem cantante dizer na rádio que o seu disco inaugural «trata do nosso tempo». O entrevistador perguntou-lhe se considerava político esse seu trabalho, e ela apressou-se a explicar que não, de modo algum. A política está fora de moda. No governo não há ninguém que saiba o que isso é – o único que sabia anda a fazer de conta que já se esqueceu, e a ver se ganha a credibilidade do export-import, que é a única que agora existe.
Mas as coisas são como são: camponeses e czares. Há pessoas que se maçam com as páginas sobre o desenvolvimento agrícola da Rússia na Anna Karenina: a mim parecem-me cada vez mais belas e necessárias. A política é um brinquedo velho que se deitou fora antes de acabar de ser construído. Os trastes velhos são o tema da literatura: o amor, a traição, a morte. E a política nas costuras dessas antiguidades, desde o tempo do Romeu e da Julieta. O velhíssimo Freud escreveu que a identidade ancorava em três pilares: religião, política, sexualidade. Explicaram-me que isso já não serve de modelo, porque a religião desapareceu e a política e o sexo já não são o que eram. Ou anda meio-mundo a dormir, ou a dobrada faz-me alucinar.  (publicado em Junho de 2013)

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