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quarta-feira, 3 de março de 2010

O BEM E O MAL

O Bem e o Mal


Quantas vezes, Senhor, este mundo parece
Um absurdo tremendo, aonde transparece
Um lívido clarão de trágica loucura...
O riso de Satã derrama a noite escura.
Sobre a algidez da terra amortecida e calma
Paira, como uma névoa, um crepúsculo d’alma...
Convulsões d’agonia abrem vales profundos...
E o nosso mundo chora a grande dor dos mundos!
Vê-se, por toda a parte, um morticínio horrível
D’almas que sofrem no Silêncio e no Invisível!...
Catástrofes sem fim, horrores, crueldades...
O ar que nos dá vida é o pai das tempestades!
A água que mata a sede aos ermos viandantes
Sepulta, no seu seio, as ilhas verdejantes
E os navios que vão, sobre as ondas, ao vento...
O fogo que prepara a hóstia do alimento,
O sacro fogo a arder sobre um bendito lar,
É o fogo que queimou teu corpo, Joana d’Arc!...
E o ferro que percorre, ó dor, as nossas veias
É o ferro que segura as portas das cadeias
E o que prende, ainda hoje, o grande Prometeu
A um monte, sob o riso irónico do céu!...
O mundo, ao mesmo tempo, a ser o bem e o mal!
A Natureza louca e Deus irracional!
O mal e o bem estão numa contínua guerra.
Como a atmosfera, a dor envolve toda a terra!...
Os feros animais devoram cordeirinhos...
O vento, a gargalhar, destrói milhar’s de ninhos!
Um dilúvio de fogo arrasa uma cidade
E uma vil ambição provoca a mortandade!
O luto veste a terra e a luz do sol exangue
Tem, de beijar o mundo, os lábios com sangue...
Qual é o teu destino, ó erma Natureza?
Riso louco a doirar o rosto da tristeza...
Qual o teu fim e o teu princípio, ó Criação!
É o sofrimento, a dor, a morte e a escuridão?
É, por acaso, o Mal a essência do Universo?
Satã, em cada ser, existirá, disperso?...
Mas como é que se explica a vida de Jesus,
E este voo imortal das almas para a Luz?
Sócrates por que viu na morte uma outra vida?
Quem lhe falou do Álem? Que voz desconhecida?...
Por que é que o grande Buda um trono abandonou
E um ceptro d’oiro, com desprezo, arremessou
Para longe, partindo humilde, pobre e triste
A pregar a Verdade a tudo quanto existe?...
Inconscientes serão ou loucos desvairados
Os grandes Cristos, a sonhar, crucificados?...
Maria, a tua dor é filha dum delírio?
Donde vem o prazer amargo do martírio?...
Donde nasce esta força oculta, misteriosa,
Esta crença, esta fé profunda e religiosa
Que nos leva prà morte a sorrir e a cantar?...
Donde dimana a Graça, assim como o luar
Que dá um aspecto d’alma às formas materiais
E uma expressão de génio aos brutos animais?...
Justiça, és ilusão? Amor, és falsidade?
Jesus, és a mentira? Ó Nero, és a verdade?...
Representais acaso o mesmo sentimento
Perante o azul e o mar, as estrelas e o vento?
A vida universal não vos distinguirá?
Na mesma indiferença, a terra guardará
As vossas cinzas? E as famélicas raízes,
Num frouxo de luxúria, esplêndidas, felizes.
Esses dois corpos definhados devoraram
E entre eles nem sequer, um momento, hesitaram?
Ó trágico mistério! Ó grande noite escura!
Duma voz que blasfema e duma voz que é pura,
Do sermão da montanha e das canções de Nero,
Das palavras d’amor, dum ai de desespero,
Do soluço de dor que sufocou Maria,
Dum brilhante sorriso egoísta de alegria,
De tenebrosa voz que esmaga e que condena,
Dessa voz de perdão que aureolou Madalena,
Do murmúrio do mundo, imenso e assustador
Chegará simplesmente um pálido clamor,
Uma mesma harmonia indistinta e apagada
À alma da Criação, remota e ilimitada,
Formando assim, ao longe, um murmúrio igual
A prece da Piedade e a blasfémia do Mal?...
Talvez para a harmonia ignota deste mundo
Concorram igualmente a noite e a luz do dia...
A fome e o desespero, o Bem e o vício imundo,
A mentira e a verdade, a tristeza e a alegria!...
Lágrimas de prazer e lágrimas de dor,
Porventura, sereis a mesma névoa densa,
Sob os raios do mesmo ardente e eterno amor
Que entre elas não se encontra a menor diferença?...
Será a parte imperfeita e o todo é a Perfeição?
O Universo é um composto estranho de escarcéus,
De trevas infernais que, combinadas, dão
O fulgor do infinito e o resplendor de Deus?
Ou é este Universo uma noite d’horror
Que já segura ao colo a aurora dum amor?
É um inverno que vai mudar-se em Primavera?
Há-de ser realidade o que hoje é uma quimera?
O sonho, a aspiração e as lúcidas visões
Que deslumbram o olhar vago das multidões,
Sempre que ouvem pregar, num gesto extraordinário,
Os que vão pela estrada amarga do Calvário,
Serão o alvorecer da nova Humanidade.
A aurora excepcional do dia da Verdade?
E a blasfémia do mal contra o amor e a vida,
É qual grito da noite, ao ver-se surpreendida
Pela eterna manhã anunciadora e estranha,
Que, súbito, aparece além duma montanha?...
Estrelas, revelai-me o fim da Criação...
Que a vossa luz separe o real da ilusão.
Entre as tristes canções da treva e da mentira,
Mostrai-me o canto ideal da verdadeira Lira!
Que a sempiterna luz se faça dentro em mim.
Que eu viva no Absoluto e no que não tem fim!
Que o fantasma d’amor, que anda sempre ao meu lado,
Se transforme num ser perfeito e imaculado.
Que deixe de ser sombra e se converta em luz...
Que seja árvore em flor e não sombria cruz!...
Que o nevoeiro espesso e triste do mistério,
Se dissipe e nos deixe ver o sol etéreo
Da Verdade e do Amor raiar por sobre o mundo,
Doirando tudo, desde o sapo mais imundo
À alma mais perfeita e ao mais duro rochedo,
De maneira que o pó, o lodo, o arvoredo,
A criatura humana e as feras mais selvagens,
O vasto mar antigo e as sensíveis paisagens,
Estremeçam d’amor e vibrem de alegria
E sejam a suprema e eterna melodia!...


Teixeira de Pascoaes

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